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Histórias exemplares - 18/06/06 14:06 Escola e gestão escolar
Vou abordar este tema através de algumas histórias exemplares emanadas da minha experiência gestionária, nos anos escolares de 1992/93 e 1993/94. Não posso garantir que as insuficiências que aqui transparecem sejam, hoje em dia, exactamente assim. Arrisco, no entanto, uma aposta em que as mudanças desde aí ocorridas não afectaram o fundo.

I – O cão no fio da navalha
Um dia, o cão vigia da escola, retido no canil durante o horário lectivo, e livre de movimentos, fora dele, dentro do perímetro da escola, atacou uma aluna.
Pois bem, o cão não fora retido no canil, como deveria ter sido, antes de serem abertos os portões aos alunos. Alguém se esquecera de o fazer. Avaliados os factos, percebe-se que era costume os funcionários tratarem da limpeza com o cão solto (ainda de portões fechados), mas que também era habitual abrir-se o portão bastante cedo (cerca de meia hora antes do início das aulas) porque àquela hora matutina já alguns alunos chegavam à escola. Assim, porque quem costumava guardar o cão vinha mais tarde, essa meia dúzia de alunos madrugadores convivia com o cão até que chegasse a pessoa «habilitada». A coisa, pelos vistos, decorria pacificamente, até o dia em que, inesperadamente, o cão se atirou à menina.
Pode-se imaginar facilmente o sofrimento e os incómodos resultantes deste nefasto acontecimento. O encarregado de educação accionou, naturalmente, uma queixa contra a escola, na pessoa do seu directo responsável, o presidente do conselho directivo que então eu era. As coisas passaram-se com a normalidade possível nestas circunstâncias. Por meu lado, informei os serviços do Ministério da Educação da ocorrência e do respectivo processo crime em que eu era visado. O tempo passou e uma amnistia engavetou o processo. Mas nunca soube a que encargos estaria eu sujeito, se a tal amnistia não ocorresse. É que nunca recebi uma reacção que fosse, por parte dos serviços do Ministério, à minha comunicação.
Nomeado pelo Ministério da Educação para dirigir uma escola, senti-me, de repente, sem rede. Infelizmente, não foi a única vez que tal aconteceu.

II – Provas globais com greve e ameaças
Quando, no final do ano lectivo de 1993/94, os alunos do ensino secundário entraram em greve contra as provas globais, “reinava” então a ministra Ferreira Leite. Parece que as provas globais faziam parte duma estratégia de regeneração do ensino – daquelas que pessoas sem dúvida bem intencionadas e quiçá iluminadas se lembram de lançar de vez em quando.
Assim, a Senhora Ministra mostrou-se inflexível. Na escola a que eu então presidia o movimento grevista estudantil couraçou-se da mesma inflexibilidade da Sra. Ministra. Adivinhem a estratégia ministerial! Telefonar para o Conselho Directivo a ameaçar-nos com processos disciplinares se a escola não realizasse as provas globais. Nem mais!!!
Por minha honra declaro que se o movimento grevista cedeu, isso se ficou a dever à percepção, por parte dos seus dirigentes, do grau de isolamento da sua escola, face às restantes escolas que inicialmente haviam aderido ao movimento. Não por mim!

III – Demissionismo e degeneração do ambiente social escolar
Assisti, durante um ano, à degeneração do ambiente social dentro da escola. A pouco e pouco, a insegurança foi progredindo. Agressões entre alunos, roubos dentro e fora das salas de aula. A causa mais imediata deste alastramento prendia-se com o demissionismo de quem deveria actuar e não o fazia. Instalou-se um clima favorável à transgressão, alicerçado num sentimento de impunidade.
A prova dos noves, tirei-a, no ano seguinte, pelo acompanhamento que fiz do processo de recuperação da segurança interna – que consistiu numa actuação persistente e consequente na abordagem dos incidentes dos quais havia público conhecimento. Era o fim da impunidade. Ocorria agora o inverso do que acontecera no ano anterior. Paulatinamente, os problemas foram diminuindo, até atingir-se níveis de conflitualidade aceitáveis.
O demissionismo tem muitas causas. No caso vertente, devera-se, em boa medida – e isto sem querer desresponsabilizar ninguém – a uma liderança contrariada, empurrada para a fogueira pela burocracia.
Tive oportunidade de vivenciar a ligeireza com que essa burocracia lavava as mãos e como, com a mesma ligeireza, apontava dedos condenatórios.

IV – Quando o muro ruiu… e a burocracia dormia
Uma noite, após sucessivos dias de chuva, um dos muros limítrofes da escola ruiu. Na queda arrastou a cerca de protecção deixando a escola desprotegida, por um dos flancos. Fez-se o que havia a fazer: comunicar a ocorrência aos serviços do CAE – Centro da Área Educativa a que pertencia a escola e aguardar uma resposta pronta, até porque era sexta-feira e vinha aí o fim de semana. Durante todo o dia ninguém com responsabilidade e capacidade para resolver o assunto se deslocou à escola. Ao fim do dia o Conselho Directivo resolveu contratar os serviços da polícia, para que o edifício não ficasse sem protecção durante o fim de semana. Serviço pago, acrescente-se.
Na segunda-feira seguinte, novo contacto com os serviços. Resposta nula. E como não havia mais verba para nova vigilância, seguiu, ao fim do dia, uma mensagem, desta vez para o responsável supremo do CAE, na qual, após relato dos passos dados, se informava da desprotecção da escola a partir dessa data.
Na terça-feira de manhã, praticamente à hora de abertura da escola, um lamuriante responsável pelos serviços de manutenção das escolas, dava início aos trabalhos. O puxão de orelhas surtira efeito!
Eis um caso de resposta pronta, mas apenas quando a notícia chegou à chefia. Enquanto permaneceu a nível intermédio, isto é, enquanto esbarrou no posterior lamuriento, perdeu-se nos escaninhos duma secretária que o dito, provavelmente, enchia com os «seus» assuntos. Teria, porventura, mais que fazer!

V – O assalto à Escola e o burocrata atarefado
Um grupo de adolescentes, vagueando numa tarde de domingo junto à escola, teve a infeliz ideia de assaltá-la. Objectivo: o bar e a papelaria.
Na segunda-feira, os acessos escancarados e a devastação denunciavam o acto, à vista desarmada. O mistério foi de pouca dura. Ao fim da manhã chegava ao Conselho Directivo a informação de que alguns alunos vendiam artigos de papelaria, chocolates e outras iguarias no interior da escola. Estavam identificados os assaltantes. Eram, à excepção de um, alunos da escola. Acharam interessante, divertido, fazer um assalto à escola deserta. «Então, e o cão?» «Qual cão? Mandamo-lo para a casota e ele foi logo.»
Lembram-se do cão que mordeu a menina? Era o mesmo. Ele há bichos que nasceram marginais!
Inquiridos os implicados e chamados os respectivos encarregados de educação, apurados os prejuízos e saldados os danos, havia que castigar os faltosos. Contactados os serviços adequados dos Ministério da Educação, teve o nosso contacto, na pessoa de um responsável pela apreciação formal do processo que viesse a instruir-se, a preocupação de avisar que se o processo não estivesse formalmente bem instruído, seria de imediato arquivado. Questionado sobre o competente «modus operandi» que a tal fim inglório obstasse, disse nada! E ficámos nós com a criança nos braços, sob ameaça de um futuro abandono!!!
Entretanto, e à revelia da burocracia oficial que tão ligeiramente invocava o formalismo para se despachar de incómodos, os alunos em questão foram suspensos por alguns dias.
O processo foi instaurado devidamente, pois que, por mero acaso, havia na escola um professor que era advogado e tinha tarimba suficiente para resolver eficazmente a incumbência. Adequadamente instruído, seguiu o processo, como devia, para o Ministério da Educação. Decorria o mês de Janeiro, se me não atraiçoa a memória; em todo o caso, estávamos no segundo período do ano lectivo. Em Junho, no final do ano lectivo e com as aulas praticamente terminadas, veio o veredicto: suspenda-se os alunos. Não me lembro já por quantos dias. Creio que os apanhava de férias!!! E eis como a burocracia consegue banalizar a justiça!
É claro que isto é uma brincadeira. Mas de mau gosto, convenhamos!
Ah, bem! Acrescente-se para compor o ramalhete, que o tal burocrata, inquiridor de formalismos, nunca se dignou elaborar instruções para a instauração de processos disciplinares em devida forma. Tinha mais que fazer, porventura!
Uma funcionária da Direcção Regional de Educação em causa, após o meu protesto, e reconhecendo as minhas razões, envidou esforços para que as futuras directivas de gestão, emanadas da dita DRE, contivessem normas relacionadas com a instauração de processos disciplinares. O que passou a acontecer, de facto. Nem toda a gente, naturalmente, está nos serviços para tratar da sua vidinha. Honra lhes seja feita!

Conclusão
Estes casos que reputo de exemplares trazem a lume a falta de suporte que o Ministério costuma dar a quem exerce funções de gestão escolar. Do mutismo dos burocratas, às ameaças dos autocratas, passando pelo entupimento do expediente com estatísticas sem fim (de alcance nem sempre visível) quem assume a responsabilidade de dirigir uma escola, sem estar escorado em amizades bem colocadas, não faz ideia daquilo em que se mete.
Uma gestão eficiente tem de contar com uma autoridade que o ME não raras vezes esvazia (veja-se o regulamento disciplinar, por exemplo). Também sei que nem sempre os gestores fazem o que deveriam fazer nesse particular. Mas pela minha experiência não sou capaz de apontar o dedo aos Conselhos Executivos das escolas quando se trata por exemplo de situações de indisciplina generalizada. È possível que ela decorra de posturas demissionistas, mas pode ser que esse demissionismo, já resulte, por sua vez, do abandono a que esse CE se sente votado.
É claro que há passos no sentido da afirmação da autoridade e de referências comportamentais que devem ser dados pelos conselhos Executivos. Refiro-me à necessidade de acolher os pais quando entregam, no início de um ciclo, os seus filhos num estabelecimento do qual pouco sabem e do qual saem muitas vezes sem nada saber. Refiro-me à necessidade de deixar bem claro, aos novos alunos que a escola tem uma direcção, que há normas de comportamento, etc. Refiro-me à resposta pronta quando há problemas, à substituição de vidros e, estores, material de desgaste que ou é alvo de vandalismo e nesse caso exige punição, ou se desgasta naturalmente e precisa de substituição. Eu sei que há o problema das verbas, mas há actuações pontuais que evitam deteriorações maiores e sobretudo dão aos alunos um sinal de civismo moralizador.
Eu sei que os professores não podem demitir-se das suas obrigações sob pena de negarem a sua função de educadores. Mas sei também, e por experiência própria, que sem uma rede de cumplicidades que envolva a escola (discentes, docentes e restantes funcionários), o ministério e os pais, não há projecto que resista.

Item editado por: Luís Ladeira, em: PM/06/21 23:06

Item editado por: Luís Ladeira, em: AM/06/26 11:06

Item editado por: Luís Ladeira, em: AM/06/26 11:06
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